Perdoando Deus

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
(Clarice Lispector)

Completamente Sozinho

Eu fico de pé, aqui
Observando as nuvens que flutuam
Imaginando porque a dor nunca me abandonou
A tristeza, aflição, confusão que nunca foram embora...
(...os momentos de alegria que eu nunca possuí)

Eu estou voando longe

De mãos dadas comigo mesmo
Compartilhando a vida comigo mesmo
Colhendo a solidão que eu semeei
Nestes campos eu sempre cresci
Revirando a escuridão de minha mente
Eu morrerei completamente sozinho.

DO GRANDE ANELO


“Alma minha, ensinei-te a dizer “hoje”, como “um dia” e “noutro tempo” e a passar dançando por cima de tudo aqui, acolá e além.
Alma minha, livrei-te de todos os recantos; afastei de ti o pó, as aranhas e a obscuridade.
Alma minha, lavei-te do mesquinho pudor e da virtude meticulosa, e habituei-te a estar nua ante os olhos do sol.
Com a tempestade que se chama “espírito” soprei sobre o teu mar revolto e expulsei dele todas as nuvens e até estrangulei o estrangulador que se chama “pecado”.
Alma minha, dei-te o direito de dizer “não” como a tempestade, e de dizer “sim” como o céu límpido: agora estás serena como a luz e passas através das tempestades.
Alma minha, restituí-te a liberdade sobre o que está criado e por criar; e quem como tu conhece a volutuosidade do futuro?
Alma minha, ensinei-te o desprezo que não vem como o caruncho, o grande desprezo amante que onde mais despreza mais ama.
Alma minha, ensinei-te a persuadir de tal modo; que as próprias coisas se te rendem: tal como o sol que persuade o próprio mar a erguer-se à sua altura.
Alma minha, afastei de ti toda a obediência, toda a genuflexão e todo o servilismo; eu mesmo te dei o nome de “trégua de misérias” e de “destino”.
Alma minha, dei-te nomes novos e vistosos brinquedos, chamei-te “destino” e “circunferência das circunferências”, e “centro do tempo” e “abóbada cerúlea”.
Alma minha, dei a beber ao teu domínio terrestre toda a sabedoria, já os vinhos novos, já os mais raros e fortes da sabedoria, os de tempo imemorial.
Alma minha, derramei em ti todo o sol e toda a noite, todos os silêncios e todos os anelos: cresceste então para mim como uma vida.
Alma minha, agora estás aí, repleta e pesada, como vide de cheios úberes, de dourados cachos exuberantes; exuberante e oprimida de ventura, esperando entre a abundância e envergonhada da sua expectação.
Alma minha, agora já não há em parte alguma alma mais amante, mais ampla e compreensiva! Onde estariam o futuro e o passado mais perto um do outro do que em ti?
Alma minha, dei-te tudo, por ti esvasiei as mãos... e agora! Agora dizes-me sorrindo, cheia de melancolia: “Qual de nós dois deve agradecer?”
Não é o doador que deve estar agradecido àquele que houve por bem aceitar?
Não será uma necessidade o dar? Não será... pena aceitar?
Alma minha, compreendo o sorriso da tua melancolia: a tua exuberância estende agora as mãos anelantes!
A tua plenitude dirige os seus olhares aos mares rugidores, busca e aguarda: o desejo infinito da plenitude lança um olhar através do céu sorridente dos teus olhos!
E na verdade, alma minha, quem te veria o sorriso sem se desfazer em lágrimas?
Os próprios anjos prorrompem em pranto vendo a excessiva bondade do teu sorriso.
A tua bondade, a tua bondade demasiado grande, não se quer lastimar nem chorar, e, contudo, alma minha, o teu sorriso deseja as lágrimas, e a tua trêmula boca os soluços.
“Não será todo o pranto uma queixa, e toda a queixa uma acusação?” Assim dizes contigo, e por isso preferes sorrir, alma minha, a derramar a tua pena, a derramar em torrentes de lágrimas toda a pena que te causa a tua plenitude e toda a ansiedade que faz que a vinha suspire pelo vindimador e pelo podão do vindimador.
Se não queres chorar, porém, chorar até o fim a tua purpúrea melancolia, precisas cantar, alma minha. — Já vês: eu, que predico isto, eu mesmo sorrio. — Precisas cantar com voz dolente, até os mares ficarem silenciosos para escutar o teu grande anelo.
Até que em anelantes e silenciosos mares se balouce o barco, a dourada maravilha, em torno de cujo ouro se agitam todas as coisas boas, más e maravilhosas, e muitos animais grandes e pequenos, e tudo quanto possui pernas leves e maravilhosas para poder correr por caminhos de violetas até à áurea maravilha, até à barca voluntária e até ao seu dono.
Ele é, porém, o grande vindimador que espera com a sua podadeira de diamante, o teu grande libertador, alma minha, o inefável... para quem só os cantos do futuro sabem encontrar nomes. E na verdade, já o teu hálito tem o perfume dos cantos do futuro, já ardes e sonhas, já a tua sede bebe em todos os poços consoladores de graves ecos, já a tua melancolia descansa na beatitude dos cantos do futuro!
Alma minha, dei-te tudo, até o meu último bem, e as minhas mãos por ti se esvaziaram: ter-te dito que cantasses foi o meu último dom.
Disse-te que cantasses. Fala, portanto, fala: qual de nós dois deve agora agradecer? Mas não; canta para mim, canta, alma minha! E deixa-me agradecer-te!”
Assim falava Zaratustra.

Vai Trabalhar Vagabundo


Vai trabalhar, vagabundo
Vai trabalhar, criatura
Deus permite a todo mundo
Uma loucura
Passa o domingo em família
Segunda-feira beleza
Embarca com alegria
Na correnteza
Prepara o teu documento
Carimba o teu coração
Não perde nem um momento
Perde a razão
Pode esquecer a mulata
Pode esquecer o bilhar
Pode apertar a gravata
Vai te enforcar
Vai te entregar
Vai te estragar
Vai trabalhar
Vê se não dorme no ponto
Reúne as economias
Perde os três contos no conto
Da loteria
Passa o domingo no mangue
Segunda-feira vazia
Ganha no banco de sangue
Pra mais um dia
Cuidado com o viaduto
Cuidado com o avião
Não perde mais um minuto
Perde a questão
Tenta pensar no futuro
No escuro tenta pensar
Vai renovar teu seguro
Vai caducar
Vai te entregar
Vai te estragar
Vai trabalhar
Passa o domingo sozinho
Segunda-feira a desgraça
Sem pai nem mãe, sem vizinho
Em plena praça
Vai terminar moribundo
Com um pouco de paciência
No fim da fila do fundo
Da previdência
Parte tranquilo, ó irmão
Descansa na paz de Deus
Deixaste casa e pensão
Só para os teus
A criançada chorando
Tua mulher vai suar
Pra botar outro malandro
No teu lugar
Vai te entregar
Vai te estragar
Vai te enforcar
Vai caducar
Vai trabalhar
Vai trabalhar
Vai trabalhar

A Metamorfose



Quando certa manhã Lucas Gomes acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo de qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.

- O que aconteceu comigo? - pensou.

Não era um sonho.

O Restaurante no Fim do Universo

O Guia do Mochileiro das Galáxias...



— Esse Deus põe uma macieira no meio de um jardim e diz "vocês façam o que vocês quiserem, ah, mas não comam a maçã". Surpresa surpresa, eles comem e ele pula de trás de uma moita gritando "Peguei vocês!".
Não teria feito muita diferença se eles não tivessem comido.
— Por que não?
— Porque se você está lidando com alguém que tem o tipo da mentalidade de quem deixa um chapéu na calçada com um tijolo embaixo para os outros chutarem pode ter certeza que ele não vai desistir. No fim ele te pega.

Da Vitória Sobre si Mesmo (Assim falou Zaratustra).



Chamais “desejo de verdade” ao que vos impele e incendeai, a vós, os mais sábios.
Desejo de imaginar tudo quanto existe; assim chamo eu ao vosso desejo.
Quereis tornar imaginável tudo quanto existe; porque duvidais com justa desconfiança que tudo seja imaginável.
É mister, porém, que tudo se amolde e curve perante vós! Assim o quer a vossa vontade. É mister que fique punido e submisso ao espírito como seu espelho e sua imagem.
Eis aqui toda a vossa vontade, sapientíssimos, como uma vontade de poder; e isto ainda que faleis do bem e do mal e das apreciações de valores.
Quereis ainda criar o mundo perante o qual possais ajoelhar-vos: é esta a vossa última esperança e a vossa última embriaguez.
Os simples, todavia, o povo, são semelhantes ao rio por onde avança um barquinho, e no barquinho vão, solenes e mascaradas, as apreciações dos valores.
Pusesteis a vossa vontade e os vossos valores no rio do porvir; o que o povo considera bom e mau revela-me uma antiga vontade de domínio.
Vós, os mais sábios, fosteis quem pôs esses hóspedes nesse barquinho; fosteis vós e a vossa vontade dominante que os enfeitou com adornos e nomes suntuosos.
Agora o rio arrasta mais para longe o vosso barquinho: tem que o arrastar. Pouco importa que a quebrada onda espume e, irada, lhe contrarie a quilha.
Não é o rio o vosso perigo e o fim do vosso bem e do vosso mal, sapientíssimos, mas essa mesma vontade, a vontade do poder, a vontade vital, inexgotável e criadora.
Mas, para compreenderdes a minha palavra sobre o bem e o mal, dir-vos-ei a minha palavra sobre a vida e a condição de todo o vivo.
Eu tenho seguido o que é vivo, persegui-o pelos caminhos grandes e pequenos, a fim de lhe conhecer a natureza.
Quando a vida emudecia, apanhava-lhe o olhar num espelho de cem facetas, a fim dos seus olhos me falarem.
Mas por onde quer que encontrasse o ser vivo, ouvi a palavra obediência. Todo o vivente é obediente.
Eis aqui a segunda coisa: manda-se ao que não sabe obedecer a si mesmo.
Tal é a condição natural do vivo.
Eis o que ouvi em terceiro lugar: Mandar é mais difícil do que obedecer; porque aquele que manda suporta o peso de todos os que obedecem, e essa carga facilmente o derruba.
Mandar parece-me um perigo e um risco. E quando manda, o vivo sempre se arrisca.
E quando se manda a si próprio também tem que expiar a sua autoridade, tem que ser juiz, vingador e vítima das suas próprias leis.
Como é então isto? — perguntei a mim mesmo. — Que é que decide o vivo a obedecer, a mandar, e a ser obediente, mesmo mandando?
Escutai a minha palavra, sapientíssimos! Examinai seriamente se penetrei no coração da vida!
Onde quer que encontrasse o que é vivo, encontrei a vontade de domínio, até na vontade do que obedece encontrei a vontade de ser senhor.
Sirva o mais fraco ao mais forte: eis o que lhe incita a vontade, que quer ser senhora do mais fraco. É essa a única alegria de que se não quer privar.
E como o mais pequeno se entrega ao maior, para gozar do mais pequeno e dominá-lo, assim o maior se entrega também e arrisca a vida pelo poder.
É este o abandono do maior; haja temeridade e perigo e jogue-se a vida num lanço de dados.
E onde há sacrifício e serviço e olhar de amor há também vontade de ser senhor. Por caminhos secretos desliza o mais fraco até à fortaleza, e até mesmo ao coração do mais poderoso, para roubar o poder.
E a própria vida me confiou este segredo: “Olha — disse — eu sou o que deve ser superior a si mesmo.”
Certamente vós chamais a isso vontade de criar ou impulso para o fim, para o mais sublime, para o mais longínquo, para o mais múltiplo; mas tudo isso é apenas uma só coisa e um só segredo.
Prefiro desaparecer a renunciar a essa coisa única: e, na verdade, onde há morte e queda de folhas, é onde se sacrifica a vida pelo poder.
É mister que eu seja luta e sucesso e fim e contradição dos fins. Ai! Aquele que adivinha a minha vontade adivinha também os caminhos tortuosos que precisa seguir.
Seja qual for a coisa que eu crie e o amor que lhe tenha, em breve devo ser adversário e o adversário do meu amor: assim o quer a minha vontade.
E tu também, investigador, não és mais do que a senda e a pista da minha vontade: a minha vontade de domínio segue também os vestígios da tua vontade de verdade.
Certamente não encontrou verdade aquele que falava da “vontade de existir”; não há tal vontade.
Porque o que não existe não pode querer; mas como poderia o que existe ainda desejar a existência!
Só onde há vida há vontade; não vontade de vida, mas como eu predico, vontade de domínio.
Há muitas coisas que o vivente aprecia mais do que a vida; mas nas próprias apreciações fala a “vontade de domínio”.
Isto ensinou-me um dia a vida, e por isso, sapientíssimos, eu resolvo o enigma do vosso coração.
Em verdade vos digo. Bem e mal imorredouros não existem. É preciso que incessantemente se excedam a si mesmos.
Com os vossos valores e as vossas palavras do bem e do mal, vós, os apreciadores de valor, exerceis poderio; e é este o vosso amor oculto e o esplendor, o tremor e o transbordar da vossa alma.
Dos vossos valores, porém, surge um poder mais forte e uma nova vitória sobre si, que parte os ovos e as cascas do ovo.
E o que deve ser criador no bem e no mal deve começar por ser destruidor e quebrar os valores.
Assim a maior malignidade forma parte da maior benignidade; mas esta benignidade é a criadora.
Digamo-lo, sapientíssimos, embora nos custe muito; calarmo-nos é ainda mais duro: todas as verdades caladas se tornam venenosas.
Aniquile-se tudo quanto pode ser aniquilado pelas nossas verdades! Há ainda muitas casas a edificar!”
Assim falava Zaratustra.

ETERNA MÁGOA – de Augusto dos Anjos.

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resisitir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga
Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

Dos Trânsfugas (Assim Falou Zaratustra).

I
“Ai! como já está triste e cinzento neste prado tudo o que há pouco estava ainda verde e cheio de cor! E quanto mel de esperança eu daqui levei à minha colmeia!
Todos estes corações juvenis se tornaram já velhos: e nem velhos sequer! Simplesmente fatigados, comuns e cômodos. Explicam-no dizendo:
“Tornamos a ser piedosos”.
Ainda não há muito os vi à primeira hora a andar briosamente; mas as pernas do conhecimento fatigaram-se-lhes e agora caluniam até os seus brios da manhã.
Na verdade, mais de um alçava dantes as pernas como um bailarino; o riso acenava-lhe com a minha sabedoria; mas depois refletiu e acabo de o ver curvado... arrastando-se até à cruz.
Dantes giravam em redor da luz e da liberdade como mosquitos e jovens poetas.
Um pouco mais velhos, um pouco mais frios, e já estão acocorados ao amor do lume como santarrões.
Desfaleceram por me haver tragado a soledade como uma baleia? Teriam debalde prestado ouvidos durante longo tempo às minhas trombetas e aos meus gritos de arauto?
Ai! Sempre são muito poucos os que têm um coração de largo fôlego e larga impetuosidade; e são também os únicos de espíritos perseverante. Tudo o mais é covardia.
E o mais é sempre a grande massa, o ordinário; o supérfluo, os que estão de mais. Todos estes são covardes!
Aquele que for da minha têmpera tropeçará no seu caminho com aventuras iguais às minhas; de forma que os seus primeiros companheiros devem ser cadáveres e acróbatas.
Os seus segundos companheiros, porém, chamar-se-ão seus crentes: um enxame animado, muito amor, muita loucura, muita veneração infantil.
A estes crentes não deverá ligar o seu coração aquele que dentre os homens for da minha índole; nessas primaveras e nesses prados de variadas cores, o que conhece não deve presumir a fraca e fugitiva condição humana.
Se pudessem doutra maneira quereriam também doutra maneira. As coisas por metade prejudicam o todo. Se há folhas que murcham, porque se há de queixar uma pessoa?
Deixa-a cair, Zaratustra, e não te queixes! Pelo contrário: varre-as com o sopro do teu vento; varre essas folhas, Zaratustra! Aparte-se de ti tudo quanto é murcho!
II
“Tornamos a ser piedosos” — assim confessam os trânsfugas; e muitos deles ainda são demasiados covardes para o confessar assim.
A estes encaro eu, a estes digo eu nas suas caras envergonhadas: Sois vós os que rezam outra vez!
Rezar, todavia, é uma vergonha! Não para toda a gente; mas para ti e para mim e para quantos têm a sua consciência na cabeça. Para ti é uma vergonha rezar!
Bem o sabes: o covarde demônio que dentro de ti se compraz em juntar as mãos e em cruzar os braços, e que desejaria ter uma vida mais fácil, esse covarde demônio disse-te: “Há um Deus!”
Assim, pois, fazes parte dos que temem a luz, daqueles a quem a luz nunca deixa repouso; tens agora que ocultar todos os dias a cabeça mais profundamente na noite e nas trevas.
E, na verdade, escolheste bem a tua hora; porque as aves noturnas tornaram a erguer o vôo. Chegou a hora dos seres que temem a luz, a hora do descanso em que... se não descansa.
Ouço-o bem: chegou a hora da sua caçada — não de uma caçada infernal, mas mansa, suave, farejando pelos cantos sem fazer mais ruído que o murmúrio de uma reza: caçadas de santarrões cheios de alma: todas as ratoeiras dos corações estão novamente preparadas!
E onde quer que erga uma cortina logo sai para fora uma borboleta noturna.
Estaria ali acaçapada com outra borboleta noturna? Que eu em toda a parte pressinto pequenas comunidades ocultas e em toda a parte em que houver esconderijos haverá novos beatos e cheiro de beatos.
Estarão reunidos durante noites inteiras e dizem entre si: — “Tornemos a ser crianças e invoquemos o Senhor!” Os piedosos confeiteiros deram-lhe cabo da boca e do estômago.
Ou contemplam durante longas noites alguma astuta aranha espreitando, que predica a astúcia às próprias aranhas, ensinando: “É bom tecer sob as cruzes!”
Ou passam dias inteiros sentados, munidos de canas de pesca, na margem dos pântanos, e julgam que aquilo é que é ser profundo; mas o que pesca onde não há peixes parece-me que nem sequer é superficial.
Ou aprendem alegremente a tocar harpa com um versejador que se desejaria insinuar no coração das donzelas, porque está cansado das velhas e dos seus elogios.
Ou aprendem a espavorir-se com algum sábio tresloucado que espera em quartos escuros que apareçam os espíritos... enquanto o seu espírito desaparece completamente!
Ou escutam um velho charlatão, músico ambulante a quem ventos tristes ensinaram toadas lamentosas: agora sibila à semelhança do vento e predica a compreensão em tom compungido.
E alguns até se tornam guardas-noturnos; sabem agora tocar cornetas, rondar de noite e despertar antigas coisas há muito tempo adormecidas.
Ontem à noite, ao lado do ripado de um jardim, ouvi algumas palavras a propósito dessas coisas alheias que procediam desses velhos guardas, tristes e mirrados.
“Sendo pai, não vela bastante pelos filhos: pais humanos fazem-no melhor do que ele”.
“É velho demais. Já nada se ocupa dos seus filhos”. Assim respondeu o outro guarda.
“Mas terá ele filhos? Ninguém o pode provar, se ele mesmo o não prova. Há muito que eu quereria que ele o provasse fundamente”.
“Provar? Acaso provou ele alguma vez alguma coisa? Custam-lhe as provas; tem muito empenho em que o acreditem”.
“Sim, sim! Salva-o a fé, a fé em si mesmo! É a condição dos velhos! A nós sucede-nos o mesmo!”
Assim conversaram os dois morcegos, inimigos da luz: depois tocaram tristemente as cornetas; eis o que se passou ontem à noite, ao lado do velho ripado do jardim.
Entretanto o meu coração contorcia-se de riso; queria estalar, mas não sabia como, e ria, ria.
Na verdade, a minha morte será afogar-me em riso, vendo asnos embriagados e ouvindo assim morcegos duvidarem de Deus.
Não passou há muito o tempo de tais dúvidas? Quem teria ainda o direito de despertar do seu sono coisas tão inimigas da luz?
Há muito que se acabaram os antigos deuses, e na verdade tiveram um bom e alegre fim divino!
Não passaram pelo “crepúsculo” para caminhar para a morte — é uma mentira dize-lo! — Pelo contrário: mataram-se a si mesmos a poder de... riso!
Sucedeu isso quando chegaram a pronunciar-se por um deus as palavras mais ímpias — as palavras: Só há um Deus! Não terás outros deuses a par de mim!
Um deus velho, colérico e zeloso, que se excedeu a este ponto.
Então todos os deuses se puseram a rir, e agitando-se nos seus assentos, exclamaram: “Não se baseia precisamente a divindade em haver deuses, e não Deus?
Quem tiver ouvidos que ouça”.
Assim falava Zaratustra na cidade que amava, e que se chama a “Vaca Malhada”. Que dali só mediam dois dias de caminho para chegar à sua caverna ao pé dos animais que amava, e sempre se lhe alegrava a alma ao aproximar-se o seu regresso.

O Guia do Mochileiro das Galáxias oferece a seguinte definição para a palavra "Infinito":
Infinito: Maior que a maior de todas as coisas e um pouco mais que isso. Muito maior que isso, na verdade, realmente fantasticamente imenso, de um tamanho totalmente estonteante, tipo "puxa, isso é realmente grande!". O infinito é tão totalmente grande que, em comparação a ele, a grandeza em si parece ínfima. Gigantesco multiplicado por colossal multiplicado por estonteantemente enorme é o tipo de conceito que estamos tentando passar aqui.
(...)
É fato conhecido que há um número infinito de mundos, simplesmente porque há um espaço infinito para que esses mundos existam. Todavia, nem todos são habitados. Assim, deve haver um número finito de mundos habitados. Qualquer número finito dividido por infinito é tão perto de zero que não faz diferença, de forma que a população de todos os planetas do Universo pode ser considerada igual a zero. Disso podemos deduzir que a população de todo o  Universo  também é zero, e que quaisquer pessoas que você possa encontrar de vez em quando são meramente produtos de uma imaginação perturbada.
“Os figos caem das árvores: são bons e doces; e conforme caem assim se lhes abre a vermelha pele. Eu sou um vento do Norte para os figos maduros.
Assim como os figos, caem em vós estas práticas; recebei o seu suco e a sua doce polpa. Em torno de nós reina o outono, reina a tarde como um céu sereno.
Vede que plenitude em nosso redor! E que belo, do seio da abundância, olhar para fora, para os mares longínquos!
Noutro tempo, quando se olhava para os mares longínquos, dizia-se: “Deus”; mas agora eu vos ensinei a dizer: “Super-homem”.
Deus é uma conjectura; mas eu quero que a vossa conjectura não vá mais longe do que a vossa vontade criadora.
Poderíeis criar um Deus? Pois então não me faleis de deuses! Poderíeis, contudo, criar um Super-homem.
Talvez vós o não sejais, meus irmãos! Podeis transformar-vos em pais e ascendentes do Super-homem: seja essa a vossa melhor criação!
Deus é uma conjectura; mas eu quero que a vossa conjectura se circunscreva ao imaginável.
Poderíeis imaginar um Deus? Signifique, para vós outros, a vontade de verdade, que tudo se transforme no que o homem pode pensar, ver e sentir! Deveis cuidar até o último os vossos próprios sentidos!
E o que chamáveis mundo deve ser criado já por vós outros; a vossa razão, a vossa imagem, a vossa vontade, o vosso amor devem tornar-se o vosso próprio mundo. E verdadeiramente, será para ventura vossa!
Vós, que pensais e compreendeis, como havíeis de suportar a vida sem essa esperança? Não deveríeis persistir no que é incompreensível nem no que é irracional.
Hei de vos abrir, porém, inteiramente o meu coração, meus amigos; se existissem deuses como poderia eu suportar não ser um deus?! Por conseguinte, não há deuses.
Fui eu, na verdade, quem tirou essa conseqüência; mas agora é ela que me tira a mim mesmo.
Deus é uma conjectura; mas, quem beberia sem morrer, todos os tormentos desta conjectura?
Acaso se quererá tirar ao criador a sua fé, e à águia o seu vôo pelas regiões longínquas?
Deus é um pensamento que torce tudo quanto está fixo.
Que!? Não existiria já o tempo, e todo o perecível seria mentira?
Pensar tal produz vertigem nos ossos humanos e náuseas no estômago; verdadeiramente, pensar assim é como sofrer modorra.
Chamo mau e desumano a isso: a todo esse ensinamento do único, do pleno, do imóvel, do saciado, do imutável.
O imutável é apenas um símbolo! E os poetas mentem demais.
As melhores parábolas devem falar do tempo e do acontecer; devem ser um elogio e uma justificação de tudo o que é perecível.
Criar é a grande emancipação da dor e do alívio da vida; mas, para o criador existir são necessárias muitas dores e transformações.
Sim, criadores, é mister que haja na vossa vida muitas mortes amargas. Sereis assim os defensores e justificadores de tudo o que é perecível.
Para o criador ser o filho que renasce, é preciso que queira ser a mãe com as dores de mãe.
Em verdade, o meu caminho atravessou cem almas, cem berços e cem dores de parto. Muitas vezes me despedi; conheço as últimas horas que desgarram o coração.
Mas assim o quer a minha vontade criadora, o meu destino. Ou, para o dizer mais francamente: esse destino quer ser minha vontade.
Todos os meus sentimentos sofrem em mim e estão aprisionados; mas o meu querer chega sempre como libertador e mensageiro de alegria.
“Querer, libertar”: é essa a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade; tal é a que ensina Zaratustra.
Não querer mais, não estimar mais e não criar mais! Ó! fique sempre longe de mim, esse grande desfalecimento.
Na investigação do conhecimento só sinto a alegria da minha vontade, a alegria do engendrar; e se há inocência no meu conhecimento, é porque nele há vontade de engendrar.
Essa vontade apartou-me de Deus e dos deuses. Que haveria, pois, que criar se houvesse deuses?
A minha ardente vontade de criar impele-me sempre de novo para os homens, assim como é impelido o martelo para a pedra.
Ai, homens! Uma imagem dormita para mim na pedra, a imagem das minhas imagens. Ó! haja de dormir na pedra mais feia e mais rija!
Agora o meu martelo desencadeia-se cruelmente contra a sua prisão. A pedra despedaça-se: que me importa?
Quero acabar esta imagem, porque uma sombra me visitou; qualquer coisa muito silenciosa e leve se dirigiu para mim!
A excelência do Super-homem visitou-me como uma sombra. Ai, meus irmãos! Que me importam já os deuses?”
Assim falava Zaratustra.
Carta ao dia dos namorados.

Meu amor, me desculpe se amanhã eu não aparecer com um presente. É que tinham muitas promoções e fiquei sem saber em qual crediário entrar. Pensei em comprar um anel bonito ou o último lançamento de celular. Mas depois fiquei na dúvida se conseguiria manter as prestações daquela bolsa linda que te dei de aniversário e que não consegui terminar de pagar porque acumulou com os sapatos que te comprei no Natal.
A gente poderia viajar para uma pousada, fazer um jantar a luz de velas e depois transar na banheira com sais e gel, mas meu chefe não autorizou que eu faltasse o trabalho depois de amanha! Ele disse que esse ano tem feriados demais e que de tanto enforcar os dias de serviço que eu já poderia me considerar um membro da inconfidência Mineira!
Não fique brava comigo! Ainda estou tentando dar um jeito de pegar uma grana emprestada com o Zé, que na verdade esta me devendo um favor pelo dia que a esposa dele me ligou para saber se estávamos juntos no bar e eu confirmei!
Se ele me ajudar com esse dinheiro acho que pelo menos um buquê de flores eu consigo enviar para o seu trabalho. Assim aqueles seus amigos sem vergonha talvez parem de ficar te assediando e aquele seu chefe desgraçado não lhe ofereça mais carona no fim do expediente!
Você outro dia estava chateada comigo e falou que só não saiu para jantar no restaurante caro com ele naquele carro importado que eu nunca vou poder comprar pra você, porque me ama de verdade e fiquei tão emocionado que joguei toda minha coleção de revistas da Playboy fora! Agora estão dizendo que a Playboy vai sair de circulação e fiquei com a sensação de que perdi a chance de no futuro ter um bem que será uma raridade e isso poderia nos ajudar a sair do aluguel!
Meu amor, prometo que vou conseguir comprar alguma lembrança para você! Para provar que te amo mais do que tudo nessa vida!
Tô usando uns sites de pesquisa aqui para ver qual o que me oferece as melhores condições de pagamento!
Não há prova de amor maior do que enfrentar um endividamento para colher o sorriso da pessoa amada!
Na pior das hipóteses se não conseguir comprar nada, prometo que na próxima data comemorativa a gente dorme naquele motel que te levei quando a gente se conheceu!
Você amou, lembra?
Então é isso!
Independente de qualquer coisa quero que saiba que vou comprar nem que seja um creme hidratante para comprovar que te amo e que você é especial para mim!
Com carinho.
Seu amado!

(Tico Santa Cruz)

Felicidade

Nunca sentimos, na vida real, a felicidade que acreditamos existir. Nossa crença nela é justificada pela fachada sorridente dos demais, assim como eles acreditam na nossa. Por isso é comum tantos viverem em função da felicidade alheia. Todos sempre sorrindo, todos sempre infelizes. Enganam-se e vivem uns pelos outros em nome de uma felicidade que ninguém sente. Como pensamos que a felicidade é a única coisa capaz de justificar a vida, tornamo-nos obcecados em ser úteis. Buscamos acreditar que os demais são felizes para que isso justifique nossas vidas miseráveis, ao menos como um meio para a imortal felicidade que de nós sempre se esconde. Por isso insistimos que a felicidade existe. Nunca confessaríamos o caráter universal da infelicidade, pois isso nos implodiria. A felicidade nunca está em nós, nem no outro, só no modo como pensamos o outro para justificar nossas vidas: um pretexto. Trata-se da projeção de nossas expectativas nos demais, e esse é o motivo pelo qual a felicidade sempre se encontra do lado de lá: pensamos que só os demais podem ser felizes como nós gostaríamos de ser. Sabendo disso, voltamo-nos aos demais, fazemo-los um favor qualquer, e eles nos sorriem uma prova de que a felicidade existe. Dela fazemos parte porque de nós veio o favor. Nossas mentiras, umas vez refletidas nos demais, tornam-se verdades: também a felicidade é regida pelo princípio da hipocrisia suficiente. Sentimo-nos miseráveis, nossas vidas não valem nada, e qual é a solução? Viver pelas dos demais, pois eles, pelo motivo que for, devem valer alguma coisa. Mas os demais pensam da mesma forma e, assim como nós, não valem nada para si mesmos. Sentem-se miseráveis, mas acreditam que nós sejamos felizes: o círculo se fecha. Se eles vivem para nós, e nós para eles, onde está a felicidade, o motivo pelo qual se vive? Está nessa miopia. Ai de nós, jumentos do sorrir! A solidão é insuportável à maioria dos indivíduos exatamente porque nos revela essa verdade. Revela que as mesmas ações que direcionamos aos demais, pensando que isso os torna felizes, quando direcionadas a nós mesmos, não nos trazem felicidade alguma. O círculo se rompe porque não conseguimos nos enganar sorrindo para nós próprios. A solidão cai sobre nossas cabeças como uma prova irrefutável de que ninguém é feliz. A felicidade é um mito e a sociedade é um teatro, então já deveríamos sabê-lo: a peça em exibição se chama sorria, idiota!
André Díspore Cancian

Grande capítulo da solidão (GO - Nicke Farewell)

     Ela veio da terra desolada. Mãe nada gentil de areia seca. Aço forjado em baixas temperaturas com candura de ventos glaciais.
     Seu rosto é um diário íntimo que faz questão de mudar todos os dias. Sempre senta de costas para o motorista porque não quer ver para onde está indo. Costuma ficar no balanço do parque vazio todos os dias enquanto almoça. Volta para a fábrica e aperta os parafusos até as seis. Acende a sua vela à noite e fica esperando que a luz preencha a casa toda...

Ensaio melodramático ao tédio

    Olhando para uma parede enquanto a cidade ainda dorme imaginando um muro sem pintura, vendo todos os tijolos ajustados numa bem definida sequência uma fila acima da outra como uma hierarquia onde o cimento seco liga um tijolo ao outro formando um muro tão rígido, forte, indestrutível.
    Quando o dia amanhece na cidade afora a vida não para e ao nosso redor as pessoas são tomadas pela rotina de cada dia, os carros, as motos, os ônibus lotados, a cidade não pode parar. Essa existência terrena vai tomando seu curso, cada indivíduo seguindo o seu dia corriqueiro, sendo as mesmas pessoas todos os dias.
    Somos toda a soma daquilo que nos vimos toda manhã com aquilo que outras pessoas acham que somos todos os dias. Pessoas e mais pessoas que são somente mais um tijolo num muro.
    O tempo para quando a vida resolve parar para mim. Somente existe vida quando o tempo por nós é ocupado e eu não faço parte desse muro. Ha! Se eu pudesse seria dois,
um que se levanta toda manhã e sai pela rua tecendo uma rotina e um que vive a contemplar seu próprio mundo que não fala só ouve e sem esforço algum se alegra, mais não sou. Sou o que se pode dizer
um resto de mistura maluca de várias coisas em um, sou tudo ao mesmo tempo nada.
    A terra é tão grande e a vida tão curta, existem tantos lugares, tantas realidades, tantas pessoas. Contento-me com esse pedaço de céu acima da minha cabeça. Eu gostaria que cada coisa me pertencesse como se só há essas coisas fosse-me capaz de amar o mundo e a vida, quero todas as coisas e ainda se tivesse tudo minhas mãos estariam vazias. Invejo subitamente todos os tijolos do muro, pois de certo modo sabem seguramente ignorar o tédio.  

"Por que você não quer; por que todos os demais querem"

"Que as mulheres possam governar o mundo. Abortem Cristo. 
Assassinem o maior e o menor dos dois males. 
Roubem ovelhas.
 Numa loja perto de você.
Nirvana. Flores. Perfume. Doces. Cachorrinhos. Amor. Solidariedade Geracional.
 E Matança de Seus Pais.
  Sheep."

"Deus é gay"

Misto quente - Charles Bukowsk


 
    Estava indo para casa depois das aulas, pela colina de Westview. Nunca tinha livro para carregar. Passei nos meus exames apenas ouvindo o que diziam durante as aulas e adivinhando as respostas. Eu nunca tive que me matar de estudar para enfrentar os exames. Podia conseguir os meus C. E, enquanto descia a ladeira, bati numa teia de aranha gigante. Eu sempre estava fazendo essas coisas. Fiquei ali arrancando aqueles fios pegajosos e procurando pela aranha. Então a vi: uma filha da puta. preta, grande e gorda. Esmaguei-a. Havia aprendido a odiar aranhas. Quando eu fosse para o inferno seria comido por uma aranha.

    Durante toda a minha vida, naquele bairro, eu vivi batendo em teias de aranha, fui atacado por passarinhos e tinha morado com meu pai. Tudo era eternamente triste, lúgubre e maldito. Mesmo o tempo era insolente e cachorro. Ou ficava insuportavelmente quente semanas a fio, ou então chovia e, quando chovia, chovia por cinco ou seis dias. A água subia pelos gramados e invadia as casas. Quem planejou o sistema de drenagem foi muito bem pago pela sua total ignorância sobre o assunto.

    E minhas próprias coisas eram tão más e tristes, como o dia em que nasci. A única diferença era que agora eu podia beber de vez em quando, apesar de nunca ser o suficiente. A bebida era a única coisa que não deixava o homem ficar se sentindo atordoado e inútil o tempo todo. Tudo mais te pinicando, te ferindo, despedaçando. E nada era interessante, nada. As pessoas eram limitadas e cuidadosas, todas iguais. E eu teria que viver com esses putos pelo resto de minha vida, pensava. Deus, eles todos tinham cus, e órgãos sexuais e suas bocas e seus sovacos. Eles cagavam e tagarelavam e eram tão inertes quanto bosta de cavalo. As garotas pareciam boas à distancia, o sol provocando transparências em seus vestidos, refletido em seus cabelos. Mas chegue perto e escute o que elas tem na cabeça sendo vomitado pelas suas bocas. Você ficava com vontade de cavar um buraco sobre um morro e ficar escondido com uma metralhadora. Certamente eu nunca seria capaz de ser feliz, de me casar, nunca poderia ter filhos. Mas que diabo, eu nem conseguia um emprego de lavador de pratos.

    Talvez eu pudesse ser um ladrão de bancos. Alguma porra. Alguma coisa flamejante, com fogo. Você só tinha direito a uma tentativa. Por que ser um limpador de vidraças?

    Vi outra dessa aranhas grandes e pretas. Estava mais ou menos na altura do meu rosto, na sua teia, bem no meu caminho. Peguei o meu cigarro e enfiei nela. A aranhona tremeu e se jogou, balançando a folhagem. Saltou da teia e caiu na calçada. Assassinas covardes, todas elas. Esmaguei-a com o meu sapato. Que dia proveitoso, tinha matado duas aranhas, e desequilibrado a balança da natureza - agora nós seríamos todos comidos pelos carrapatos e moscas.

    Fui descendo o morro, estava perto do fundo quando um arbusto grande começou a se mexer, O Rei das Aranhas estava atrás de mim. Corri para enfrentá-lo. Minha mãe apareceu por detrás da folhagem.

    - Henry, Henry, não vá para casa, não vá para casa, seu pai vai matá-lo!

    - Como é que ele vai fazer isso? Eu posso lhe chutar a bunda!

    - Não, ele está furioso, Henry! Não vá para casa, ele vai te matar! Estive esperando aqui por horas!

    Minha mãe tinha os olhos arregalados de medo e eles eram lindos, grandes e castanhos.

    - O que é que ele está fazendo tão cedo em casa?

    - Ele ficou com dor de cabeça, e o dispensaram à tarde!

    - Eu pensei que você estava trabalhando, que tinha achado um novo emprego.

    Ela tinha conseguido um emprego de governanta.

    - Ele apareceu e me pegou! Está furioso! Ele vai matar você!

    - Não se preocupe, mamãe, se ele mexer comigo eu lhe darei um pontapé na bunda, prometo para a senhora.

    - Henry, ele achou as suas historietas e as leu!

    - Eu nunca pedi pra que ele as lesse.

    - Ele as encontrou na gaveta! E leu elas, ele leu todas elas!

    Eu tinha escrito umas dez ou doze histórias. Dê uma máquina de escrever a uma pessoa e ela se tomará um escritor. Tinha escondido as minhas histórias debaixo do forro de papel da minha gaveta de meias e cuecas.

    - Bom - eu disse - o velho ficou fuçando e acabou queimando os dedos.

    - Ele disse que vai te matar! Disse que nenhum filho seu poderia escrever histórias como aquelas e continuar vivendo sob o mesmo teto com ele!

    Eu a peguei pelo braço.

    - Vamos para casa, mamãe, e ver o que ele faz...

    -Henry, ele atirou todas as roupas no jardim, toda a sua roupa suja, sua máquina de escrever, sua valise e suas histórias!

    - Minhas histórias?

    - Sim, elas também...

    - Eu vou matá-lo!

    Eu me afastei dela e atravessei a Rua 21 em direção à Avenida Longwood. Ela veio atrás.

    - Henry. Henry, não vá lá.

    A pobre mulher me agarrava pela camisa.

    - Henry, escute, arrume um quarto para você em algum lugar! Henry, eu tenho dez dólares! Pegue esses dez dólares e arrume um quarto para você!

    Parei e me virei. Ela estava segurando os dez dólares.

    - Esqueça. Eu vou mesmo.

    - Henry, pegue o dinheiro! Faça isso por mim! Faça pela sua mãe!

    - Bem, está bem...

    Peguei os dez e coloquei no bolso.

    - Obrigado, é muito dinheiro.

    - Tudo bem, Henry. Eu te amo, Henry, mas você deve ir embora.

    Ela correu na minha frente enquanto continuei a andar para casa. E, então, eu vi: tudo estava espalhado pelo jardim, toda a minha roupa limpa e a suja também, a valise aberta, meias, cuecas, pijamas, um roupão velho, tudo jogado ali, no jardim, na rua. E eu vi meus manuscritos sendo soprados pelo vento, na sarjeta, espalhados por todos os lugares.

    Minha mãe entrou correndo pelo corredor lateral e eu gritei para ela de maneira que ele também ouvisse:

    - Diz pra ele sair que eu vou lhe arrancar sua maldita cabeça fora!

    Em primeiro lugar eu corri atrás dos meus manuscritos. Foi o golpe mais baixo que ele poderia fazer comigo. Eles eram uma coisa na qual ele não tinha o direito de mexer. Enquanto eu ia pegando página por página, da sarjeta, do jardim e da rua, comecei a me sentir melhor. Catei todas as folhas que eu pude, coloquei-as na valise, usando um sapato como peso, e então fui salvar a máquina de escrever. Ela tinha caído fora do seu estojo mas parecia bem. Olhei para os meus trapos espalhados. Deixei a roupa suja, deixei os pijamas pois os dois eram dele e tinham sido passados para mim depois de velhos. Não havia muito para colocar na mala. Fechei-a, peguei a máquina de escrever e comecei a andar. Pude ver dois rostos me observando por detrás de uma cortina. Mas esqueci rapidamente, andei até a Longwood, atravessei a 21 e subi a velha colina de Westview. Não estava me sentindo muito diferente do que o habitual. Não estava nem excitado nem deprimido; tudo isso parecia ser apenas uma continuação. Estava indo pegar o bonde W, descer e tomar outro, e ir para algum lugar do centro da cidade.








Retardo mental de uma falta deperspectiva de vida


   

   Barba por fazer, cabelo bagunçado  e um sentimento que não é nem raiva, nem  ódio nem solidão. Minha cabeça  doendo a tarde toda, meu corpo abastecido por cafeína e tédio, meus sentimentos é uma linha contínua em uma reta num gráfico de função exponencial.
   A vida se tornou um monte de outras coisas, a vida se tornou em grande maioria uma perca de tempo. Vejo as pessoas girando em torno de si mesmas, em suas futilidades, se afogando em seus problemas,
o mundo e esses malditos seres que nele abitam me dão nojo, sinto desprezo, vergonha alheia, mais por que afinal se no fundo no fundo sou como todos.
    Nos perfis de redes sociais qualquer idiota é uma celebridade, com suas câmeras semi-profícionais passam a amar fotografia, difundir a "cultura" dos cult, ser críticos e malditos seres socializando-se.  A minha vida está parada no tempo, não tenho emprego, nem grana
deus se tornou um ser cômico que só idiotas acreditam nele, que só gente idiota na sua arrogância criam seu amigo ou pai imaginário, isso me faz sorri um sorriso de desprezo e escárnio. As malditas mensagens de alto-ajuda, os malditos textos bíblicos... acho engraçado quando me perguntam sobre isso e mudo logo de assunto
e coloco os seus deuses no bolso para depois jogar no chão pisar por cima e cuspir na sua imundície. A religião só serve para idiotizar as pessoas.
   O meu mundo não passa de noites mal dormidas, de livros e mais livros que me tiram da realidade. Esse mundo é uma droga, um maldito monte de merda habitado por seres desprezíveis e eu faço parte da grande massa, não sou ninguém e estou perdido como todo mundo, eu odeio tudo isso.
    Eis-me aqui novamente...

    Agora sou "um pouco" a toa e a minha cabeça não para um segundo de  me "atormentar"
 com pensamentos, idéias, maneiras de tentar descobrir o porque das coisas, como acontecem e um milhão de hipóteses possíveis e impossíveis,
a grande diferença é que nada me espanta mais. Nem a que ponto chegam as pessoas, nem as suas idéias pequenas, a grande parte das pessoas que convivemos são idiotas, desprezíveis.
   Nada me causa espanto, tudo é um constante, uma linha reta. Estamos em um modo de vida em que nascemos, crescemos e morremos...
    Será que devo viver para o presente ou para o futuro?  Estuda, trabalha, sair, se divertir, dormir, comer, tudo perdeu a graça, as bebidas não fazem mais efeito, o suicídio não é uma saída...
    Que mais? Pra que? Por quê? O que devo esperar da vida?  devo ao menos ter perspectiva de vida?
 por que vivo tanto tempo parado se não é tão importante assim  pensar no futuro?
     Por quê?
Onde  eu posso  pensar que irei chegar criando ou não perspectivas de vida?